Por que Anitta importa (para a Academia)?

Há, pelo menos, mais de dez anos, a professora titular e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Simone Pereira de Sá vem se dedicando a pensar questões que emergem do universo do funk: das texturas eletrônicas, passando pelo seu espraiamento nas redes sociais digitais e chegando na sua entrada no mainstream. É neste caminhar com os debates acalorados sobre o gênero musical que “incomoda” parte de setores conservadores da sociedade brasileira, que a pesquisadora encontra na cantora Anitta uma forma de colocar suas investigações em constante movimento. “Anitta criando fatos, tretas todo dia, causando e se posicionando, inclusive, politicamente, é parte da construção da sua star persona”, sintetiza a pesquisadora, que está prestes a lançar seu livro “Música pop-periférica: videoclipes, performances e tretas na cultura digital” (Editora Appris) pontuado por referências à “girl from Rio”. Nesta entrevista aos pesquisadores Thiago Soares e Winglison Tenório, Simone Pereira de Sá, que coordena o Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (Labcult) e é professora do curso de Mídias e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF, discorre sobre seu conceito de música pop-periférica, o que está em jogo nesta perspectiva, como Anitta é uma peça fundamental para entender as controvérsias em redes (que Simone “abrasileira” para “tretas”) e de que maneira os estudos sobre música, cultura pop e “tretas” digitais são fundamentais para entender a sociedade brasileira. 


Em dois artigos recentes, publicados nos livros “Territórios Afetivos da Imagem e do Som” e “Divas Pop: O Corpo-Som das Cantoras na cultura midiática”, ambos lançados pelo Selo PPGCOM da UFMG, você utilizou a cantora Anitta como epicentro para suas reflexões. Como se deu seu interesse por Anitta e que questões você mapeia nestes artigos?

Na verdade, meu interesse pela Anitta se deu no contexto da pesquisa que eu desenvolvo e estou concluindo neste momento, estou até lançando um livro “Música pop periférica: videoclipes, performances e tretas na cultura digital”. O interesse principal nessa pesquisa é duplo. Por um lado, eu estou interessada em pensar na circulação dos gêneros musicais de periferia do Brasil, principalmente o funk, através das redes digitais, e em ver o crescimento do funk, como este gênero musical ganhou visibilidade e se multiplicou em subgêneros através das redes digitais e sobretudo das audiovisualidades digitais, o videoclipe e outros tipos de produtos audiovisuais. Dentro disso, o subtópico de interesse é em torno das divas pop-periféricas, as mulheres no funk e suas performances e estratégias de pensar no local com o global, etc. E aí, claro, a Anitta se torna um exemplo muito interessante porque, justamente, no momento que eu estava começando a pesquisa, nos últimos quatro anos, Anitta também ganha muita visibilidade no Brasil dentro do funk e, ao mesmo tempo, tensionando os limites do funk para além dele, indo em direção ao pop. Então essa dupla, a questão das audiovisualidades digitais nos gêneros periféricos e a questão dos corpos periféricos das divas pop destes gêneros musicais, são as questões principais que eu trabalho na minha pesquisa e, por isso, a Anitta se tornou muito importante. Vamos dizer assim, para início de conversa.

O que eu vejo de mais importante no trabalho da Anitta é que ela traduz para atualidade a questão do que é ser pop, o que é ser uma artista do pop no Brasil hoje, que estratégias usar, que tipo de performance podemos acionar. E como articular aspectos locais da favela, da periferia, dos corpos periféricos, da marquinha do biquíni que aparece lá no “Vai malandra” até os ícones de uma certa imagem carioca para um contexto global como no recentíssimo “Girl from Rio”. Esse movimento de articulação do local com o global, é muito complexo, muito difícil de ser feito e de ser bem-sucedido. A gente tem poucas cantoras que vão ser bem-sucedidas nessa direção e a Anitta se torna fundamental nesse processo todo.

No artigo “Anitta no Rock in Rio: negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas” (presente no livro “Divas Pop”), você analisa a apresentação da cantora no Rock in Rio Lisboa. Na ocasião, Anitta cita performaticamente Carmen Miranda na abertura do espetáculo. Você realizou pesquisas sobre Carmen Miranda ainda no seu mestrado. Que conexões são possíveis de serem feitas entre as duas estrelas?

Não é à toa que a Anitta se veste de Carmen Miranda, lá no show dela do Rock in Rio de Lisboa – e um dos trabalhos que eu produzi foi em torno dessa performance – onde ela aparece como Carmen Miranda e cita a frase mais famosa dela, que é “disseram que eu voltei americanizada”. É como se ela tivesse utilizando a imagem de Carmem Miranda, se inspirando, se apropriando e atualizando essa imagem. Porque ela aparece no primeiro momento vestida de Carmen Miranda, mas imediatamente ela tira a roupa, o turbante e aparece um shortinho e começa a dançar funk. 

Então, no capítulo do livro, eu vou trabalhando como que Carmem Miranda tem alguns elementos que a Anitta vai atualizar. Essa proposta de trabalhar na indústria mainstream, mas com o material brasileiro, Carmen com o samba, Anitta com o funk. Um tipo de performance bastante pop, não tem outra palavra. Isso quer dizer, muito focado em figurino, em dança, em acompanhamento de outros dançarinos em coreografias marcadas, uma preocupação com a imagem, para além da música. Carmen inclusive vai ser também atriz. Então, tudo isso é muito importante e vai articular as duas.

A metodologia que utilizo na análise da performance da Carmen Miranda no Rock in Rio, ela vem do diálogo com a Diana Taylor no livro “O Arquivo e o Repertório”. Sobretudo, na proposta de pensar performance a partir da noção de roteiro, ela vai falar de roteiro performático. Como que esse roteiro, portanto, constrói uma narrativa que guia o espectador de alguma maneira. Então, eu estou utilizando essa metodologia para pensar na narrativa, no roteiro da Anitta nesse show. Na verdade, eu estou comparando esse show com o show do Rock in Rio Brasil, realizado no Rio de Janeiro, que ela faz no ano seguinte e como que esses dois shows se complementam em termos de um roteiro que vai dizer no Rio “olá, eu sou Anitta e eu venci, eu estou no palco do principal festival de rock e pop no Brasil”, da favela para o mainstream brasileiro. E, complementarmente no de Lisboa, ela tá dizendo “o funk venceu e chegou na Europa, chegou no festival internacional”. Isso fica muito claro nos roteiros, nas falas dela. No Rock in Rio do Rio de Janeiro ela fala pouco, mas o roteiro tá construído para enfatizar a favela, a favela chegando. E o de Lisboa tem altos discursos, que analisei no capítulo, onde ela está falando também de uma chegada do funk, fazendo agradecimentos a toda comunidade funkeira, “eu estou aqui em nome de vocês”.

Na série documental “Anitta Made in Honório”, o cantor will.i.am, reconhecido pelo seu trabalho no grupo Black Eyed Peas, comenta sobre o protagonismo de Anitta no reconhecimento da presença do Brasil na música pop. Olhando numa perspectiva histórica, de Carmen Miranda passando pelo samba e pela Bossa Nova (para ficar apenas nestes exemplos mais icônicos), artistas brasileiros sempre estiveram em negociação com a música pop global. O que a presença de Anitta acrescentou a esta história?

Ainda continuando a pensar nesse paralelo entre a Carmen Miranda e a Anitta, Carmen foi a primeira artista, vamos dizer assim, a almejar sucesso internacional no Brasil a partir da música brasileira. Quer dizer, primeira a almejar não, a primeira a conseguir e, possivelmente, outras estavam almejando também. O sucesso da Carmen é indiscutível. Ela vira uma das grandes atrizes de Hollywood, influencia a moda, se torna uma celebridade.

Bom, só que qual a diferença? A Carmen está atuando num momento de construção da indústria fonográfica do Brasil, de construção da ideia de celebridade, de popstar. Ela é uma “atriz” fundamental – pensando a partir da Teoria Ator-Rede – na construção dessa rede original, definindo o que é o samba, negociando, disputando sentidos com Noel Rosa, por exemplo, que não gostava do samba da Carmen. Ela foi muito rechaçada, vamos dizer assim, justamente por dar uma linguagem pop para o samba fora do Brasil. 

No caso da da Anitta, o que eu vejo é, em primeiro lugar, uma circulação através das redes digitais. A Carmen se tornou célebre pelo cinema, Anitta pelos videoclipes, álbum visual – no artigo do livro “Territórios Afetivos da Imagem e do Som” analisei o álbum visual da Anitta, o “Kisses”. Quer dizer, ela tem um conjunto de estratégias audiovisuais, o projeto “Checkmate”, voltado pro mercado internacional para circular através das redes digitais, usando muito fortemente as redes para ganhar visibilidade.

Então, o que acho importante é que as duas estão muito antenadas com as formas de circulação de cada momento. Seja o cinema, nos anos 1930 e 1940, seja o audiovisual nas redes digitais hoje. Além disso, é interessante pensar como as duas trazem um certo excesso pop. Tem cenas memoráveis dos filmes da Carmen Miranda que são monumentos à cultura pop e sempre assim no que o pop tem de excessivo, de quase barroco e Anitta também. 

Caetano Veloso tem um texto muito interessante, onde ele fala que num primeiro momento, ele tinha vergonha da imagem que a Carmen Miranda estava projetando no exterior. Depois, faz um mea culpa e percebe que a graça de Carmem Miranda era esse excesso. Não por acaso, Caetano também vai falar da Anitta e muito bem. Convida Anitta para cantar com ele e Gil na abertura das Olimpíadas no Brasil, depois grava com Anitta. Acho que essa sensibilidade pop das duas está muito presente. Claro que a Anitta está atualizando isso para o momento presente trazendo um outro gênero. O samba já é consagrado no Brasil, a música que a Carmen fazia, e funk é o gênero que ainda não ganhou o status de música nacional. 

Ao tratar de Anitta, você a classifica como “diva pop-periférica”. Você cunhou o termo “música pop periférica” em seus estudos recentes. Em que o termo auxilia na compreensão das dinâmicas da música pop no Brasil?

Eu comentei que estou lançando um livro que é o resultado dessa pesquisa e o título é exatamente “Música Pop-Periférica: videoclipes, performances e tretas na cultura digital”. Logo no primeiro capítulo, eu abordo de novo essa questão do rótulo de música periférica e, sobretudo, porque me preocupa que a gente essencialize essa noção. Então, quando estou falando de música pop periférica, estou tendo o primeiro cuidado de não tomar isso como uma essência, a música que vem da periferia, até porque as periferias são plurais. Com esse rótulo, estou querendo, em primeiro lugar, apontar um movimento que surgiu na última década, no Brasil, das músicas que foram produzidas na periferia ganharem visibilidade além do seu local de origem através de redes, que eu tenho chamado de redes sociotécnicas, usando a noção do Bruno Latour da Teoria Ator-Rede. A partir da ocupação do uso das redes digitais, esses artistas ganham visibilidade e constroem redes mais amplas.

Por exemplo, o funk carioca, que era mais restrito ao Rio de Janeiro, começa a circular nas redes através de vídeos revelando as batalhas do passinho, na virada de 2010 a 2012, influenciando outras cenas locais – em São Paulo, Pernambuco, etc. É isso que estou chamando de redes sociotécnicas transversais, que naquele momento não circulam na grande mídia, no mainstream, mas vão construindo visibilidade através dessas redes da internet. Então, quando eu estou falando de periferia, de periférica, gêneros periféricos, estou me referindo a esse conjunto de expressões musicais: do funk, do brega, do brega funk e outras expressões que usam as redes para ganhar visibilidade, que vão se misturando, vão se articulando em redes transversais. E que, sem dúvida, ganharam uma visibilidade tal que foram ocupando e negociando com espaços mainstream.

Num segundo sentido, essa expressão também quer apontar para os juízos de valores que são construídos em torno dessas músicas. O Felipe Trotta, meu colega, fala bastante disso, de como, na noção de periferia, cada vez que a gente aciona essa noção, vem junto um conjunto de valores sobre o que que é o popular e o que deve ser o popular. 

O comentário do Rick Bonadio de que o funk não deveria estar representando o Brasil no Grammy (“Já exportamos Bossa Nova, já exportamos samba rock, Jobim, Ben Jor. Até Roberto Carlos. Mas o barulho que fazem por causa de 15 segundos de funk na apresentação da Cardi B, me deixa com vergonha. Precisamos exportar música boa e não esse ‘fica de quatro’”, disse Bonadio no Twitter) é um exemplo claro desse tipo de, vamos dizer, juízo de valor sobre que músicas devem representar o Brasil, que gêneros musicais são “elegantes”, complexos para representar o Brasil fora. Ou que gêneros ele, Bonadio, gostaria que estivessem sendo visibilizados fora do Brasil, segundo o gosto dele, só isso. Quer dizer, não tem nenhuma discussão mais aprofundada sobre um certo preconceito de quem fala em torno do que deve ser o popular, popular legítimo e o popular ligado às indústrias, que seria o pop, e, portanto, mal visto por alguns críticos, alguns empresários – incluindo aí o próprio Roberto Medina, que hesitou muito até convidar a Anitta para o Rock in Rio. Ele dizia que o “gênero dela” (o funk) não era adequado para um festival – que toca de tudo – mas que o gênero que ela fazia não era adequado. Então, a gente está falando disso, que essa música pop periférica aciona um conjunto de valores ligados à periferia, que são múltiplas, valores diversos, não existe só um tipo de periferia, mas me parece que é importante nesse rótulo acionar, apontar para essas tensões. É isso que estou querendo.

Simone lança o livro "Música Pop-Periférica: videoclipes, performances e tretas na cultura digital", resultado de sua pesquisa onde aborda, dentre outras questões, o rótulo de música periférica.

Em recente tweet, após apresentação no Grammy da versão remix de WAP, transformada em funk pelo DJ brasileiro Pedro Sampaio, Cardi B afirmou ter se apaixonado pelo funk brasileiro a partir das parcerias (“featurings”) entre as artistas Anitta e Ludmilla. Como os featurings dão formas a novos ecossistemas de consumo da música na era digital?

Pensando como os featurings (feats) criam novos ecossistemas na cultura digital, tenho um artigo onde estou comentando vários feats da Anitta, como essa é uma estratégia fundamental para o trabalho dela, não só dela. Conectando com o que eu estava falando antes sobre a rede sociotécnica de música pop-periférica, o que a gente vê através dos vídeos é exatamente a ampliação dessa rede. Uma rede de artistas internacionais que colaboram com Anitta, de gêneros, vamos dizer, pop e/ou periféricos dos seus países, seja dos Estados Unidos, seja na América Latina principalmente. Neste sentido, essa é uma estratégia mercadológica que, por um lado, você une forças para ganhar visibilidade em um outro local, mas, o que eu chamo atenção, é que também constrói-se uma aliança estética de mútuas influências. As apropriações do funk, por exemplo, por outros artistas, vão acontecendo a partir desses feats com a Anitta: lembro que no projeto “Checkmate” ela canta uma bossa nova com o produtor Poo Bear, ele está tocando um violão e fala que não conhecia Bossa Nova e que aprendeu através da Anitta. Então, tem também influências estéticas ali e a partir desses feats, o que estou argumentando, é que também constroem-se, vamos dizer, gêneros híbridos do funk com o reggaeton, Maluma e Anitta e por aí vai. São novas experimentações estéticas, que são bem interessantes pensando numa música pop-periférica latino-americana e mesmo circulando nos Estados Unidos.

No videoclipe “Vai Malandra”, quando encena uma mulher vivendo e se divertindo numa favela, Anitta mais uma vez se vê às voltas com uma série de controvérsias interseccionando questões de classe social, gênero e raça, nas redes sociais digitais. Há defesas acaloradas da estrela por ter “exposto a sua celulite” na abertura do clipe até questões sobre apropriação cultural em torno da questão racial. Como você enxerga essas controvérsias?

Sobre as “tretas” que envolvem o trabalho da Anitta, eu tenho chamado de “treta” a partir da categoria de controvérsia da Teoria Ator-Rede. Sem dúvida, primeiro é preciso reconhecer que a cultura pop se constrói em torno dessas controvérsias. É fundamental que a celebridade, o artista imerso na cultura pop, seja sempre um emulador, um provocador de controvérsias. Na cultura digital, como a gente tem discutido amplamente, intensamente, essas tretas se acirram entre fãs e haters, posições políticas que se opõem e o artista está envolto em todas essas redes sociotécnicas que atravessam a internet, onde as posições são diferentes. Isso vai gerar sempre “tretas”, vamos dizer assim.

Pensando na Teoria Ator-Rede, a controvérsia é também, segundo Latour, o momento onde o social se revela. As “tretas” em torno da Anitta revelam o social em ação, as pessoas se posicionando contra ou a favor de uma mulher usar short, aparecer celulite, se posicionar, fazer uma tatuagem no cu ou qualquer outra coisa. Isso é importante porque revela muito sobre a sociedade, no final das contas. Não é menor: essas tretas não são menores, não são frívolas. Ou melhor, na sua frivolidade, elas trazem à superfície aquilo que move a sociedade: os valores, as crenças, os sonhos, o imaginário.

A trajetória artística de Anitta remonta à sua origem junto ao funk e suas negociações com a música pop nacional e global. A cantora é acusada de “domesticar” o funk ao mesmo tempo que é vista como “exportadora do funk brasileiro” – sobretudo por artistas estrangeiros. Você localizaria esta ambivalência no projeto Checkmate ou em alguma outra obra da artista?

É uma pergunta sobre a ambivalência da Anitta: por um lado, acusada de domesticar o funk, por outro, de ampliar a sua visibilidade. Eu acho que ela aponta justamente para essa dinâmica do global e do local. Quer dizer, quanto maior a visibilidade do trabalho de uma artista internacionalmente, isso implica em negociações e eventualmente apagamentos das marcas locais, ou de transformações, vamos dizer assim, das marcas locais. Então, entender essa dinâmica, eu acho que é fundamental. Em que momentos as artistas enfatizam suas marcas locais? Em que momentos elas apagam essas marcas? 

O que é interessante a gente pensar é que isso não é claro, isso não é óbvio, isso não tem fórmula. Quer dizer, a Anitta não necessariamente apaga todas as marcas locais para se tornar uma diva pop-periférica internacional. Pelo contrário, em alguns momentos é importante para ela acionar a noção de favela. Inclusive, ela vive dizendo que vem da favela, enquanto que ela não vem da favela, ela vem do subúrbio carioca, tem uma diferença entre subúrbio, bairro suburbano e as favelas, as comunidades. Então, ela vem de Honório Gurgel, que é um bairro popular carioca. 

Vamos encontrar essa ambivalência no próprio videoclipe “Vai Malandra”. Que favela é essa que ela está construindo? Que imaginário é esse em torno da favela? É uma favela glamourizada, inclusive ela filmou no Vidigal, que é uma favela da zona sul carioca, com corpos sarados, mulheres com corpos maravilhosos, homens também, acionando um imaginário muito festivo, sexual. Como se a favela fosse só isso, fosse só esse glamour. Mas, em outros momentos, a própria ideia de deixar a bunda de celulite, etc., mostra que ela é muito hábil, nessas articulações entre o global e o local. Ora acionando efetivamente marcas de corpos periféricos (não que celulite seja marca de corpo periférico), mas algumas outras marcas também e na própria letra da “Girl From Rio” ela abre falando isso – “nossos corpos não são corpos “manequim”, nós só temos curvas e tal”. Quer dizer, acionando uma ideia de trópico, de um tipo de garota gostosa dos trópicos do Rio de Janeiro, cheia de curvas. Então, mais uma vez, é interessante a gente perceber essa ambivalência, não negativamente, mas positivamente. Como que ela ora apaga, ora enfatiza elementos da favela, da periferia. Não sei se ela domestica o tempo todo, acho que ela constrói imagens aí.

A frase “Anitta faz alguma coisa” se tornou meme no Twitter após as cobranças feitas a artista por posicionamentos políticos e ideológicos desde o caso de assassinato de Marielle Franco passando pela eleição presidencial de 2018. Ao mesmo tempo que é rechaçada por ainda se vincular ao funk, há uma série de “cobranças” feitas à cantora que parecem situar Anitta para além dos estigmas atrelados ao gênero musical. Como você percebe estes contrastes?

Eu também trabalhei essa questão de como a Anitta é cobrada politicamente no livro que vou lançar. O último capítulo fala exatamente dessas negociações em torno da performance política da Anitta. E meu projeto novo de pesquisa vai tratar exatamente dessa questão da negociação entre política, estética e performance, vamos dizer assim, da música pop-periférica. Então, acho que vocês estão perguntando se a Anitta não está indo além dos estigmas do funk quando pedem para ela se posicionar politicamente. Eu diria que talvez a gente possa inverter a questão. Quer dizer, ela não está indo além do funk, a verdade é que a música pop periférica se tornou um lugar central das disputas políticas. A cultura pop se tornou um lugar central das disputas políticas no Brasil nesse momento. Vide o youtuber Felipe Neto se tornando um ator político extremamente relevante nas disputas por narrativas. Aí a gente pode pensar na Anitta, pode pensar no funk da vacina, em vários outros exemplos de como o funk e outros gêneros têm se apropriado de pautas políticas e se posicionado eventualmente. Na verdade, a pergunta que estou fazendo agora na minha nova pesquisa é: de que maneira esses atores vão influenciar no cenário político? A partir dessas conversas, dessas negociações.

Seus estudos sobre o funk dão demonstrativos de como o gênero musical é fundamental para se entender uma série de traços da cultura brasileira. Do entendimento do funk como “música eletrônica brasileira”, como “música pop periférica”, entre outros. Como você responde, com seus estudos, sobre a máxima, bastante comum nas redes sociais digitais, de que o funk “não seria cultura”?

Sobre os comentários de que funk não é cultura, funk não é música, eu acho que a gente já tocou nesse assunto antes, quando a gente estava falando da própria definição dos gêneros da música pop-periférica. Quer dizer, a noção de periferia ela aciona um conjunto de preconceitos, o que vem da periferia aciona um conjunto de estigmas ainda hoje. É claro que isso não é em bloco, que isso é negociado. É claro que existem brechas, mas por isso que eu uso a noção de música pop-periférica para caracterizar esses gêneros que vão, como diz o Felipe Trotta, incomodar. “A música que incomoda” é o nome de um texto do Felipe, que me parece interessante: pensar que o funk (e não só o funk) traz algum incômodo ainda. 

Por que ele traz esse incômodo? Porque ele é uma música de periferia, que fala de certos temas que não são bem vistos e, portanto, é encarado em alguns ambientes como música de mal gosto. Além disso, tem a questão do corpo, da performance corporal, do rebolar, do mostrar e balançar a bunda. Me parece que esses são elementos importantes para a gente entender esses preconceitos. Agora, obviamente, eu me posiciono em um outro lugar, quer dizer, eu acho que tem uma enorme riqueza, uma enorme complexidade. Esses gêneros me interessam não só porque eles são expressões da periferia, mas porque têm uma enorme complexidade rítmica, melódica, coreográfica. Acho que eles efetivamente contribuem artisticamente para a cultura e para a música brasileira.

No álbum “Kisses”, Anitta explorou dez faces de sua star persona num álbum visual. Olhando de forma mais ampla para sua carreira, a cantora aciona, por exemplo, papéis como o da funkeira, da diva pop e da empresária empreendedora de si. Como você vê essas diferentes encenações?

As diferentes personas da Anitta no álbum “Kisses” foram parte da análise que eu fiz no livro “Territórios Afetivos da Imagem e do Som”. O argumento que eu desenvolvi junto com meu orientando Leonam Dalla Vecchia, é que o álbum visual “Kisses” explora essa noção de star persona. Eu acho que a noção de star persona é bem importante para entender a performance pop. Que persona comparece nesse álbum? 

Eu queria enfatizar aqui o conceito de star persona que é justamente uma ideia que dialoga com a noção de performance e está apontando para imagem que a artista constrói a cada momento e que é calcada, parte na sua biografia, na “vida real” (entre aspas), e parte na construção de uma imagem. Então, a gente identificou, pelo menos, três stars personas no álbum visual. Que são: a Anitta poderosa, depois a Anitta baladeira e a Anitta romântica e autêntica. Isso se baseia na sua vida real e a gente vai dando exemplos disso, como nos próprios clipes do álbum visual isso aparece: ela beijando o ex-namorado, ela conectando casos da vida em que saiu beijando todo mundo no sambódromo no carnaval, etc. Ela usa isso e até a própria ideia de “Kisses” (beijos), mas como isso se entrelaça numa narrativa midiática que é bem importante para a carreira dela essas diferentes facetas que ela explora a cada momento.

O crescimento de Anitta no mercado musical e na cultura pop acompanha a capilarização das mídias sociais e dos algoritmos nas nossas vidas. Ao mesmo tempo, Anitta parece ser mais reconhecida pelo seu tino comercial e mercadológico do que, propriamente, por seus dotes vocais, por exemplo. Você localizaria questões nestas premissas?

Eu teria dúvida sobre essa premissa. Eu acho que a Anitta é, em primeiro lugar, extremamente adorada pelos seus fãs, que vêem nela uma artista, uma diva pop com dotes vocais, com uma performance corporal, coreografias, competente. Para além dos fãs, a gente ouve bastante comentários mesmo dos haters de Anitta reconhecendo que ela tem uma boa potência vocal, é afinada, canta bem e que, na verdade, o problema dela é o repertório. Mas Anitta sempre foi elogiada pelos seus dotes vocais, me parece que isso é um elemento importante.

Agora, outra questão que eu acho que é importante a gente pensar, é que sem dúvidas, para todos os artistas nesse momento a visibilidade nas redes digitais é fundamental. Quer dizer, a performance de si, usando uma categoria lá do Goffman, é fundamental nas redes sociais e que transborda, que vai além da música, além de saber cantar e saber dançar. Você tem que estar presente nas redes dando bom dia, produzindo material pros stories das diferentes redes, postando. Isso vai de Anitta a Caetano. 

Isso remete a uma outra discussão, que é sobre a coerência expressiva do artista, que já discuti com a Beatriz Polivanov, minha colega da UFF, e permite pensar que o artista, no momento que está vivendo nesse ambiente de altíssima exposição, que são as redes digitais, cada declaração, cada posicionamento, simplesmente uma foto com uma roupa tal ou uma ausência de roupa vai gerar comentários, posicionamentos. Quer dizer, me parece que é fruto desse ambiente, onde a noção de público e privado não está mais presente, as fronteiras são muito fluidas e você acorda de de cara lavada, dá um bom dia, Anitta dá um bom dia e isso já causa já provoca alguma reação a favor ou contra.

Neste ambiente de ampla exposição e controvérsias, me parece que a questão dos dados, dos algoritmos, da plataformização da música é um elemento fundamental para entender não só a trajetória da Anitta, como do funk. Como eu falei, com a presença nas redes, o funk ganhou muita visibilidade nas suas diferentes modulações: funk ostentação, funk, brega funk. Essa performance de si nas redes digitais da Anitta criando fatos, tretas, criando todo dia alguma coisa, causando todo dia e se posicionando, inclusive, politicamente, é parte da construção da sua star persona.

por Thiago Soares e Winglison Tenório

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