As controvérsias de Gloria Estefan como popstar cubana

Parte deste texto foi apresentado no congresso da Kismif, na cidade do Porto (Portugal) em 2018.

Por ocasião do lançamento do meu novo livro “Modos de Experienciar Música Pop em Cuba” (2021) pela Editora da UFPE, como resultado do projeto de pesquisa financiado pelo edital Universal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico  (CNPq) do governo brasileiro chamado “Música Pop em Cuba: Enfrentamentos Políticos e Midiáticos” (2016-2018), compartilho no site do grupo de pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (Grupop), a apresentação que realizei no congresso Keep it Simple, Make it Fast (Kismif), na Universidade do Porto, em Portugal, em 2018, por ocasião do convite do professor André Rottgeri (Universität Passau – Alemanha) para integrar a mesa intitulada “Female Music Icons” – a proposta da mesa era debater a relação entre cantoras e Nações, tentando traçar relações tensas entre personas midiáticas e musicais e a política institucionalizada de Estados nacionais. 

Esta perspectiva tinha tudo a ver com a pesquisa que eu desenvolvi em Cuba, entre os anos de 2016 e 2018. Em março de 2016, fiz uma viagem para Havana (Cuba) para realizar uma pesquisa de campo por ocasião da visita do presidente Barack Obama a Cuba, retomando uma relação diplomática rompida com a Revolução Cubana de 1959 e com o embargo econômico imposto a Cuba pelos Estados Unidos. Minha proposta era entender as performances culturais, artísticas e musicais das relações diplomáticas e geopolíticas entre Cuba e Estados Unidos naquela ocasião através de espetáculos de música pop, notadamente os shows do grupo Major Lazer e Rolling Stones, entre março e abril de 2016, em Havana.

A pesquisa também se ateve a entender como se dão os processos de consumo de música pop anglófila (notadamente aquela produzida nos Estados Unidos) na Havana contemporânea. Entrevistei fãs cubanos de Madonna, Lady Gaga e DJs de festas pop no contexto da ilha socialista entre outros personagens que consomem música anglófona mesmo este tipo de cancioneiro não sendo divulgado oficialmente nos sistemas midiáticos estatais cubanos. Minha proposta era compreender as brechas do consumo cultural, para além das imposições da macropolítica. Adentrar, portanto, nas micropolíticas, nos afetos e no cotidiano. Parte destes estudos está no livro “Modos de Experienciar Música Pop em Cuba”, que você baixa gratuitamente aqui.

Entretanto, minha participação na mesa “Female Music Icons” tratava especificamente da controversa relação de Gloria Estefan como “ícone musical cubano”. Assistam abaixo trecho do programa de celebridades do canal E! Entretainment que trata da tensa relação que a cantora cubana Gloria Estefan tem com sua terra natal, a ilha de Cuba. 

Filha de um dos seguranças do ex-presidente cubano Fulgêncio Batista, deposto do cargo pelos revolucionários liderados por Che Guevara e Fidel Castro, em 1959, Gloria e sua família migraram para os Estados Unidos e construíram a vida do outro lado do Mar do Caribe, na cidade de Miami. A artista, que emigrou com 2 anos de idade, cresceu na Flórida, virou um dos ícones da música pop latina, tendo vendido mais de 100 milhões de álbuns ao redor do mundo e fundado um dos grupos de maior prestígio na mescla entre música pop e ritmos latinos, o Miami Sound Machine, inaugurando um processo que pode-se chamar de “tropical beat” na música pop global. 

A figura de Gloria Estefan sempre me intrigou por estar numa linha tênue da controvérsia: a proporção de seu sucesso mundo afora, com músicas como “Conga” e “Don’t Wanna Lose You” é o mesmo de seu ativismo contra o governo socialista instituído a partir da Revolução Cubana de 1959. Emerge desta controvérsia inúmeras possibilidades de abordagem. Adotarei aqui aquela que venho trabalhando no Grupo de pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (Grupop): pensar como aparecem as encenações das identidades nacionais, neste caso em específico, a performance de cubanidade da qual Gloria Estefan faz parte. Parto de um conjunto de reflexões agrupadas sob o termo de Estudos de Performance, mais precisamente nos trabalhos de Diana Taylor e Richard Schechner para debater como estas controvérsias se anunciam e se imbricam, na medida em que a cantora também envelhece e passa por diferentes “estágios da vida”. 

Para Diana Taylor, a performance seria uma forma de olhar fenômenos enquadrando-os como cênicos e construindo reflexões sobre seu potencial cívico, racial, de gênero, étnico, entre outros. Performances seriam tanto objetos de investigação (atos cênicos, peças de teatro, rituais, manifestações) quanto processos de investigação e “enquadramentos” de situações como performáticas. No caso deste trabalho, adotarei as duas perspectivas: as performances de Gloria Estefan em seus videoclipes são tanto objetos analisáveis quanto processos de entendimento de sua relação com a geopolítica de Cuba. 

Desde que emigrou de Cuba, suas canções são proibidas em terras cubanas nos meios de comunicação controlados pelo Estado devido às suas críticas direcionadas ao país após a Revolução Cubana, ao mesmo tempo que globalmente, Gloria Estefan se constituiu como principal “representante” cubana na música pop – embora não reivindicasse traços de “cubanidade” no seu cancioneiro. Deixo aqui o videoclipe “Conga”, do grupo Miami Sound Machine, do qual Gloria Estefan fez parte:

Postula-se que Gloria Estefan, a partir de sua trajetória no grupo Miami Sound Machine e posteriormente em carreira solo, destaca um processo de constituição de sonoridades que remetem ao “son”, à salsa e à timba (integrantes de um imaginário da musicalidade cubana) a partir de teclados e baterias eletrônicas. “Conga” e “Dr Beat” por exemplo, cantadas em inglês e espanhol, vão aderir a batidas eletrônicas (beats), teclados, gerando uma dicção pop para a chamada “música tropical”, já em ampla circulação nos países caribenhos. No videoclipe de “Conga”, o Miami Sound Machine se apresenta como “grande novidade” se opondo a um certo tédio da música em vigência, na ocasião, na década de 1980, nos Estados Unidos. Em “Dr Beat”, temos uma conexão do grupo Miami Sound Machine com os contingentes latinos nos Estados Unidos, recorrendo ao humor para tratar do convite à dança e as festividades que atravessam as populações negras e latino-americanas subalternizados no País. Abaixo, você assiste a “Dr Beat”:

Chegamos a um primeiro traço performático na trajetória de Gloria Estefan: da imigrante que sai de Cuba por questões políticas à jovem fascinada pela Flórida e pelo contexto multicultural e étnico de suposta liberdade e constante festividade dos Estados Unidos. Estefan encena o “drama social” do migrante cubano bem-sucedido na América que sente falta da terra, mas tem problemas políticos com o regime socialista. Algo que viria a se consolidar, por exemplo, com outras cantoras cubanas igualmente migrantes: Camila Cabello e Lauren Jauregui. Nas imagens abaixo, vemos as postagens do Instagram da cantora Camila Cabello, mundialmente famosa com o hit “Havana”, na ocasião da morte de Fidel Castro em 2016. Na primeira imagem, a cantora se coloca como “Cuban princess” (princesa cubana) e em seguida, celebra a morte de um dos líderes da Revolução Cubana também em sua rede social. A cantora chama Fidel de “cucaracha” (barata), um apelido para ironizar o líder por sua dificuldade em morrer – assim como as baratas. O mesmo ato de xingar Fidel Castro de “cucaracha” é empreendido pela cantora Jauren Jauregui.

A dimensão performática do corpo da cantora pop que, ao migrar, milita contra o governo cubano – que se instaura em Gloria Estefan e vai se reiterando em Camila Cabello e Lauren Jauregui – a partir de gestos, atos performáticos e atuações em redes sociais digitais, ganha especial pontuação nesta performance de Camila Cabello no seu hit “Havana” no Today Show, em 2017:

A partir da canção “Havana”, que trata da saudade de um suposto amor deixado na capital de Cuba, Camila Cabello, ao final do espetáculo, faz um discurso sobre a América livre, endossando discurso em torno dos “dreamers” (sonhadores) que são os migrantes latinos que pleiteiam acolhimento político nos Estados Unidos. A postura política de Camila Cabello alinha-se à da cantora Gloria Estefan, de apoio às políticas migratórias de cubanos para os Estados Unidos – numa clara tentativa de promover a migração em massa e enfraquecer o regime socialista na ilha de Cuba. 

À medida que vai envelhecendo, Gloria Estefan também vai acentuando a sua dimensão nostálgica em torno da lembrança da sua vida em Cuba, trazendo para seu cancioneiro, não mais a festividade do pop latino e da “tropical beat”, mas uma espécie de melancolia diaspórica que se ambienta em cassinos e casas de bolero, evocando o imaginário de uma Cuba pré-revolucionária, como no videoclipe Mi Tierra, de 1993:

Para além da Havana pré-Revolução, vemos no videoclipe da canção “Mi Bueno Amor”, um retorno ainda maior do ponto de vista temporal: a personagem de Gloria Estefan remonta às origens do Hotel Nacional de Cuba, ícone da arquitetura colonial em Havana, enquanto passeia pelos corredores com vestidos de baile, trazendo à tona todo imaginário colonial de uma Cuba não só pré-revolucionária, mas sobretudo colonial e alinhada aos enquadramentos feitos por grande parte dos meios de comunicação capitalistas sobre a ilha de Cuba.

O roteiro da nostalgia da migrante cubana nos Estados Unidos ganha texturas contemporâneas no videoclipe da canção “Havana”, de Camila Cabello. A estrela pop se constrói no audiovisual como uma migrante sonhadora que passa “perrengues” no seu cotidiano como latina mas foge para o cinema onde ela pode projetar seu imaginário nostálgico sobre Havana – evocando uma série de ícones que remetem tanto ao videoclipe “Mi Tierra” quanto “Mi Bueno Amor”, de Gloria Estefan.

A perspectiva desenhada nesta apresentação é a de ressaltar um conjunto de homologias performáticas, estéticas e políticas que são inauguradas com o rompimento de Gloria Estefan com a política sistêmica de Cuba e seu posterior sucesso como ícone da música pop que reivindica sua origem cubana para se contrapor à narrativa socialista presente na ilha. Ressaltamos os incômodos existentes nos estudos de música em Cuba com o chamado “pop latino”; pela hegemonia de Gloria Estefan e também pela cristalização do imaginário de Miami e mais amplamente dos Estados Unidos entre os fãs de música pop na ilha socialista. Com um histórico de negação das relações culturais e econômicas entre Cuba e os Estados Unidos desde a Revolução Cubana, ter uma cantora que simboliza o exílio, que migrou para os Estados Unidos, vendeu milhões de álbuns e critica duramente o regime de governo cubano é profundamente tensivo. No entanto são estas tensões e disputas que, quando reencenadas, fazem emergir as problemáticas geopolíticas e performáticas da cultura pop no contexto global.

por Thiago Soares

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