Passe livre para a serpente do rap

Ninja MC: rapper constrói espaço de interação com passageiros em metrô na cidade do Recife (Foto: Cadu Ribeiro)

por Cadu Ribeiro e Guilherme Souto (Bolsistas Pibexc / UFPE)

O hip-hop é uma serpente: cresce, troca de pele. Foi de cultura de rua a fenômeno mainstream. Como um ouroboros, a serpente se retroalimenta e, eventualmente, volta às próprias origens. Não à toa que “keeping it real” (“mantenha a real”, o pé no chão) é um dos lemas mais repetidos no meio. Para cada Drake, o mais importante rapper do mainstream, com mais de 83 milhões de ouvintes mensais na plataforma Spotify, ainda há centenas de jovens nas periferias de todo o mundo usando a arte do rap para juntar uns trocados.

Impossível desvincular a propagação da cultura hip-hop do ambiente urbano. As desigualdades sociais das metrópoles fomentam as expressões da periferia. Não é por acaso que os termos “cultura urbana” e “cultura hip-hop” se confundem. Nova Iorque (onde nasce o fenômeno), nos Estados Unidos; Bogotá na Colômbia, São Paulo no Brasil: metrópoles desiguais, contornos urbanos por onde a serpente do hip-hop se infiltra.

Estas cidades assistiram às periferias tomarem conta das malhas urbanas: comunidades e favelas contrastando com condomínios de luxo; becos e vielas em oposição a grandes avenidas; motocicletas e carros blindados. E gente. Separada por grades, insegura, com receio do Outro. A violência urbana gritando. E essa gente sai de lá do mesmo jeito que se chega em quase todo lugar na cidade – de ônibus.

Ou de metrô.

O transporte público é um elemento tão central à paisagem urbana quanto ao hip-hop. A expressão cultural, surgida no Bronx, Nova York, nos Estados Unidos, nos anos 1970, teve as estações de metrô, os vagões e encruzilhadas como ambientes de encontros de sons: ritmos afro-caribenhos, soul e R&B se misturavam às batidas metálicas oriundas dos trens passando por trilhos. Jovens nova-iorquinos organizavam festas para arrecadar dinheiro, como foi a fatídica tarde em que o DJ Kool Herc criou a técnica no breakbeat, em 1973, mas também rimam em troca de grana nos metrôs. Então, não é de se surpreender que o ônibus e o metrô tenham se convertido em uma espécie de palco público para os rappers.
Corta.

Saímos de Nova York, Estados Unidos, década de 1970, estamos no Recife, Brasil, de 2023, cidade com 1,5 milhão de habitantes, localizada no Nordeste. A capital pernambucana tem particularidades culturais, políticas e econômicas. O imaginário nostálgico do metrô novaiorquino encontra a realidade dos ônibus calorentos que furam as veias da metrópole. A vida está dura, rimar no ônibus para ganhar uma grana. Por que não?

Serpenteando a ilegalidade

Ilustração: Classira

O freestyle no ônibus ou “rimar no busão” não está divorciado das artes de rua – muito pelo contrário – elas se confundem, colaboram e negociam. A lógica é simples. Um rapper sobe, geralmente pela traseira no ônibus e, com aval do motorista, pede licença e se apresenta para os passageiros. Começa a improvisar rimas, com uma caixinha de som bluetooth tocando um beat de fundo. Usa das vestimentas, aparência, expressão facial e humor dos passageiros como combustível poético. “Tem que ter o subterfúgio e o meu é rimar no transporte público”, diz Vinícius ZN, 24 anos, que passou 8 anos rimando nos ônibus do Recife para ganhar o sustento e manter acesa a chama do sonho de viver do hip-hop. “Comecei a rimar e um ano depois, já fui para os coletivos para olhar uma perspectiva que não me afastasse do que eu faço, que é a rima”, completa. O saldo ao final de um dia de rima num ônibus é de R$ 90, em média.

Quando perguntados sobre o porquê de ir para o ônibus, os rappers dão respostas similares: tirar um sustento, sem parar de viver da arte. Mistura de idealismo e amor pelo rap com a necessidade de sobrevivência. A serpente precisa se alimentar. Stalker MC, 24 anos, rapper há 7 anos, “cria da Batalha de Santana”, como ele se define, conta que rimar nos ônibus apresenta percalços e desafios. “A rima do busão tem que arrancar o sorriso do seu público”, atesta. Isso porque nem todo mundo que está no ônibus “pediu” por aquele show. Muito pelo contrário. É comum viradas de rosto, fones de ouvido colocados na hora do início das rimas, olhadas para o outro lado de alguns passageiros. O que resta ao rapper? Tentar agradar o público com humor.

A “rima no busão” serpenteia pelo terreno minado da ilegalidade. Pela legislação do Estado de Pernambuco, lei nº 14.681, de 2012, é “proibido o uso de aparelhos sonoros ou musicais por parte dos usuários no transporte público”. No entanto, acordos tácitos são feitos. Motoristas abrem as portas, passageiros – alguns mais afeitos – abrem o bolso. Quem costuma ver a expressão “marrenta” de rappers em videoclipes, cara fechada, expressão de indignação, pode até estranhar quando Stalker MC rima nos ônibus sorrindo. “A gente tem que agradar o passageiro, falar do cotidiano, fazer sorrir e descontrair”, ensina. As formas poéticas são simples. Rimas fáceis. Quase como aqueles personagens tão comuns do Nordeste brasileiro: os emboladores ou repentistas.

O rapper Rick Hop rima nos coletivos enquanto Henrique Peligro toca violão (Foto: Guilherme Souto)

RAPentistas

Rimando nos ônibus, os rappers são um pouco emboladores. RAPentistas. A embolada, forma de poesia tradicional do Nordeste, consiste numa espécie de “pingue-pongue” entre dois emboladores, cantada sobre um beat de pandeiro. O teor é crasso, cômico e geralmente explícito e imbuído de um ingrediente secreto que une o rap e a embolada – a improvisação.
Nos estudos acadêmicos sobre a embolada, um conceito que se destaca é o de “encantamento”: uma espécie de magia que as palavras dos emboladores criam, aliada ao ritmo do pandeiro, tal qual um artista de rua no sul da Ásia encantaria uma serpente com as notas produzidas por seu pungi. Mas aqui, a serpente é o espectador, cuja mente é arrebatada pelo disparo de versos espirituosos e pela batida incessante que dita a rima.

A diferença do jogo é, principalmente, tecnológica: enquanto a batida do embolador é feita sobre uma pele fina esticada sobre um aro de metal, a do rapper de ônibus é feita sobre um “type beat” baixado do Youtube num aparelho de som portátil com conexão Bluetooth. É um encontro de gerações, mas também é uma serpente se despindo da antiga pele do pandeiro e vestindo a nova do bluetooth.

Mas a relação entre rap e repente não é nova. A banda Faces do Subúrbio, do Alto José do Pinho, já fazia a mescla desde a década de 1990. Seu álbum de estreia, auto-intitulado, contém a faixa “Os Tais”, na qual Zé Brown e Tiger rimam (na clássica dinâmica de dupla da embolada) e atestam: “mas é um tal de embolador e é um tal de hip-hop, é a cultura do Nordeste que é por aí forte”.

Zé Brown explorou ainda mais profundamente o relacionamento entre os gêneros no aclamado álbum “Repente Rap Repente”, lançado em 2011 e no subsequente “Poesia do Povo”, de 2018. As obras de Zé Brown são, por natureza, intencionais em sua união entre hip-hop e repente. “Considero esse álbum mais um resultado de pesquisa musical e cultural que fiz com ritmos e manifestações culturais. Cada região me inspirou para compor”, declarou o artista em entrevista ao portal R7.

Longe da produção formal de álbuns, o acasalamento também acontece de maneira subliminar, dentro dos ônibus, onde a poética do hip-hop se adapta aos ouvidos dos incautos passageiros. Stalker MC tece uma teoria sobre as aproximações estéticas entre os gêneros: “pela minha experiência, a poesia sempre vai ser a mesma (do rap e do repente). O repente sempre vai mexer muito com a sua positividade, com seu astral… Entre as rimas do busão, você tem seu livre arbítrio de falar o que quiser. Se eu for usar da minha cultura, ia falar de miliciano, de presidente, de prefeito, e vamo combinar que a gente tá trabalhando com a sociedade, e nem todo mundo quer escutar o que tu tem a dizer”, entrega, para logo em seguida, recomendar: “seja mais gentil com o próximo, né?”.

A serpente se dobra, se esgueira, se prepara e dá o bote: uma rima bem construída, um elogio singelo e o trabalhador desatento vira um fã. Dá uma moeda, outro dá dois reais. A conta gotas, o RAPentista faz seu ganha pão. Hora de descer. Próximo ônibus. Ainda há muito trabalho a fazer hoje.

Stalker MC troca a performance “marrenta” pela descontração quando vai rimar em transportes coletivos (Foto: Guilherme Souto)

Batalhas

Anoitece. E o clima de risos, humor e leveza das rimas nos ônibus cede espaço para rostos contraídos, dedos em riste. É a Batalha de Rima. A serpente do hip-hop agora disputa, se ergue. O certame se inicia desde o momento em que a pele é trocada e é mostrada a sua versão mais agressiva em busca da premiação e do título de “campeão da noite”. O ringue é montado e seus golpes não têm limites, tudo que pode ser usado com o intuito de agredir o oponente na busca de atingir o nocaute, ou fatality.

O ato de se impor, elevar-se diante sua presa, mostrando toda sua pompa, intimidando e mostrando que não há como escapar da peçonha. Assim como as cobra, os MCs mostram sua postura e “marra” diante dos adversários, essa imposição com o objetivo de superá-lo antes de desferir seus ataques, desestabilizando mentalmente apenas com sua presença.

Veneno este, que pode ser comparado com a lírica que o artista possui, uma estrutura que engloba: argumentos, referências, métricas e flows. Na arte do improviso, todos esses aspectos mostram o poderio que o artista tem a oferecer artisticamente para compreensão e direcionamento do público, levando a plateia no fluxo da narrativa e assim superando o justador.

A disputa envolve muito mais do que possamos imaginar, vai muito além da arte. Intrigas pessoais, desavenças, disputas territoriais. Peles e mais peles sendo trocadas, camadas e mais camadas de todo o ônus social e pessoal que vivem. Os artistas carregam isso consigo a fim de expelir esse veneno que corre nas suas veias que escapam pela palavra.

A improvisação passa a ter um tom peçonhento, rimas sujas e agressivas com o objetivo de desestabilizar o adversário. Conquistando, envolvendo o público e jurados, tal qual um encantador de serpentes que com suas melodias e notas musicais. Os artistas conquistam por onde passam construindo e destruindo visões com suas rimas baseadas nas referências e vivências.

Inúmeras estratégias que fazem o MC chegar no ápice artístico. Flows, métricas que vão muito além de argumentos e palavras, o ato de se impor perante o adversário. Tudo isso somado, mostra o poderio que os artistas oferecem no espetáculo que é a batalha de rima. Os raciocínios e reflexões das batalhas colocam em xeque o poder argumentativo que têm em domínio no combate, ostentando a pluralidade técnica que possuem em seu arsenal.

Alteridades culturais fazem com que diversas outras tribos que tangenciam o movimento podem encontrar dificuldade para compreender o que realmente significa cada um desses aspectos e rotulam as batalhas como violentas. Entretanto, as regras do que pode ser dito nas batalhas são leis não escritas hoje em dia. Algo que foi evoluindo com o tempo, em confluência com as redes sociais e a conscientização sobre questões como machismo, homofobia e capacitismo. Aqui é o lar das serpentes, e elas têm suas regras. Elas não são as mesmas do resto da selva da pedra, mas, quem quer fazer parte da ninhada, tem que segui-las à risca.

Acaba a batalha. O vencedor da noite recebe seus louros. Semana que vem, eles se reúnem de novo para um novo embate. Agora, é hora de voltar para casa, amanhã a serpente sai do ninho de novo e faz seu caminho pela metrópole. Sem suas presas, mas ainda com sua língua – mais afiada do que nunca.

Trabalho desenvolvido como parte da pesquisa para o projeto de documentário RAPentistas – Fazendo Rap nos Coletivos do Recife que integra também o projeto “Identificando potencialidades nas cenas locais e subsidiando Políticas Culturais renovadas para as principais Cidades Musicais do país, contemplado no Edital CNPq/MCTI/FNDCT 40/2022.

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